Intergalático
Texto por Luiz Bras
Publicado no blog Ficção Científica Brasileira, online, Abril, 2019
Os apreciadores da sétima arte ganharam mais uma fascinante obra-prima quando o genial Andrei Tarkovski levou para as telas o romance Piquenique na estrada, dos irmãos − não menos geniais − Arkadi e Boris Strugatski. Não se trata de adaptação, mas de recriação. Stalker é mais um exemplo de filme que não segue à risca o roteiro do romance de origem. As demoradas e introspectivas imagens das ruínas e da natureza, típicas da linguagem do cineasta russo, não nasceram de trechos análogos da obra literária, mas são elas que impulsionam a poesia mística do longa-metragem.
Durante minha leitura do livro Intergalático, ambicioso trabalho do fotógrafo paranaense Guilherme Gerais, senti-me um solitário stalker de Tarkovski, deambulando por uma zona misteriosa. Uma zona-experiência desabitada, mas fisicamente conectada de algum modo a outros pontos do universo. A ausência da figura humana e das cores − todas as fotos são em preto e branco − intensifica mais ainda essa solidão viajante. (Muitas páginas-imagens do livro podem ser apreciadas online em guilhermegerais.com/Intergalatico)
São paisagens áridas e semiáridas, imagens granuladas em que o traçado de vales e montanhas, a pouca vegetação e o vasto céu parecem adormecidos, à espera da próxima era geológica. São também construções em desconstrução, além de muitos artefatos e objetos abandonados, denunciando grandes ausências e pequenos esquecimentos, como se a humanidade tivesse subitamente desaparecido. Permeando tudo isso há uma série de sinais e diagramas deixados aqui e ali, símbolos astronômicos que evocam os tradicionais enredos de visitação alienígena.
Há também elementos que sugerem um jogo extraordinário, entre eles a capa-tabuleiro do livro. No blogue Entretempos, Daigo Oliva escreveu sobre esse detalhe:
O livro de Guilherme Gerais, ainda que contrarie minhas inclinações, é uma viagem fantástica. Todo em preto e branco, retrata uma jornada mística, misturada a ilustrações que remetem a jogos de tabuleiro. As imagens parecem flertar com algum tipo de bruxaria e, mais do que uma história contada com começo, meio e fim, representa um estado de espírito sombrio e estranho.
Jogo extraordinário. Viagem fantástica. Bruxaria. Criação do mundo… No blogue Hotel Berlim, Rodrigo Grota reforça essa percepção multifacetada:
Com ilustrações do artista gráfico Arthur Duarte, e projeto gráfico do próprio fotógrafo, Intergalático também parte do pressuposto de que qualquer narrativa visual oferece sempre um segredo, um desejo que não se revela por inteiro, mas está sempre presente. Dessa forma, a abertura para um imaginário espacial, repleto de tecnologias já abandonadas, reforça essa tese de que o mundo em que se vive é sempre o mundo em que se cria: estar vivo sendo algo próximo de estar em constante fabulação.
Construída sem frases, períodos e parágrafos, a fotonarrativa de Guilherme Gerais também nos lembra da força descomunal da linguagem verbal. Uma única palavra − justamente a que dá título ao livro − contamina e direciona toda a nossa interpretação. Se o título fosse outro, tenho certeza de que a narrativa também seria outra. As mesmas fotos, na mesma sequência, contariam outra história. De mistério policial, ou sobrenatural, ou de viagem… Mas duvido que seria uma história mais potente − ao mesmo tempo esotérica e cósmica − do que essa Intergalático.
+ + +
Luiz Bras é ficcionista e ensaísta, autor de Distrito federal, entre outros livros.
Texto por Luiz Bras
Publicado no blog Ficção Científica Brasileira, online, Abril, 2019
Os apreciadores da sétima arte ganharam mais uma fascinante obra-prima quando o genial Andrei Tarkovski levou para as telas o romance Piquenique na estrada, dos irmãos − não menos geniais − Arkadi e Boris Strugatski. Não se trata de adaptação, mas de recriação. Stalker é mais um exemplo de filme que não segue à risca o roteiro do romance de origem. As demoradas e introspectivas imagens das ruínas e da natureza, típicas da linguagem do cineasta russo, não nasceram de trechos análogos da obra literária, mas são elas que impulsionam a poesia mística do longa-metragem.
Durante minha leitura do livro Intergalático, ambicioso trabalho do fotógrafo paranaense Guilherme Gerais, senti-me um solitário stalker de Tarkovski, deambulando por uma zona misteriosa. Uma zona-experiência desabitada, mas fisicamente conectada de algum modo a outros pontos do universo. A ausência da figura humana e das cores − todas as fotos são em preto e branco − intensifica mais ainda essa solidão viajante. (Muitas páginas-imagens do livro podem ser apreciadas online em guilhermegerais.com/Intergalatico)
São paisagens áridas e semiáridas, imagens granuladas em que o traçado de vales e montanhas, a pouca vegetação e o vasto céu parecem adormecidos, à espera da próxima era geológica. São também construções em desconstrução, além de muitos artefatos e objetos abandonados, denunciando grandes ausências e pequenos esquecimentos, como se a humanidade tivesse subitamente desaparecido. Permeando tudo isso há uma série de sinais e diagramas deixados aqui e ali, símbolos astronômicos que evocam os tradicionais enredos de visitação alienígena.
Há também elementos que sugerem um jogo extraordinário, entre eles a capa-tabuleiro do livro. No blogue Entretempos, Daigo Oliva escreveu sobre esse detalhe:
O livro de Guilherme Gerais, ainda que contrarie minhas inclinações, é uma viagem fantástica. Todo em preto e branco, retrata uma jornada mística, misturada a ilustrações que remetem a jogos de tabuleiro. As imagens parecem flertar com algum tipo de bruxaria e, mais do que uma história contada com começo, meio e fim, representa um estado de espírito sombrio e estranho.
Jogo extraordinário. Viagem fantástica. Bruxaria. Criação do mundo… No blogue Hotel Berlim, Rodrigo Grota reforça essa percepção multifacetada:
Com ilustrações do artista gráfico Arthur Duarte, e projeto gráfico do próprio fotógrafo, Intergalático também parte do pressuposto de que qualquer narrativa visual oferece sempre um segredo, um desejo que não se revela por inteiro, mas está sempre presente. Dessa forma, a abertura para um imaginário espacial, repleto de tecnologias já abandonadas, reforça essa tese de que o mundo em que se vive é sempre o mundo em que se cria: estar vivo sendo algo próximo de estar em constante fabulação.
Construída sem frases, períodos e parágrafos, a fotonarrativa de Guilherme Gerais também nos lembra da força descomunal da linguagem verbal. Uma única palavra − justamente a que dá título ao livro − contamina e direciona toda a nossa interpretação. Se o título fosse outro, tenho certeza de que a narrativa também seria outra. As mesmas fotos, na mesma sequência, contariam outra história. De mistério policial, ou sobrenatural, ou de viagem… Mas duvido que seria uma história mais potente − ao mesmo tempo esotérica e cósmica − do que essa Intergalático.
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Luiz Bras é ficcionista e ensaísta, autor de Distrito federal, entre outros livros.